Comunidades ainda sofrem efeitos da tragédia de Mariana e precisam de reparação, revela pesquisa

Os resultados da pesquisa realizada sobre os processos de reparação do desastre da barragem de Fundão, ocorrido na cidade de Mariana, em Minas Gerais, estão sendo divulgados pela Rede de Pesquisa ComRioComMar (*), por meio do Boletim Técnico ComRioComMar.

O Boletim faz parte da pesquisa desenvolvida pela Rede intitulada Sem o rio e sem o mar: implementação de tecnologia social de governança participativa para políticas públicas de recuperação da bacia do Rio Doce no Espírito Santo, realizada entre os meses de julho de 2017 e julho de 2020.

 “A execução da pesquisa contemplou dois grandes eixos analíticos: um destinado à pesquisa acadêmica, com a finalidade de obter conhecimento mais refinado do campo, incluindo as seguintes dimensões: sociedade civil e ativismo; políticas públicas, capacidades estatais e governança; e outro destinado à implementação de tecnologia social de governança participativa, capacitação e devolução à comunidade local, que foi denominado ComRioComMar Opinião Popular”, explica a professora do Departamento de Ciências Sociais da Ufes Marta Zorzal, uma das participantes da pesquisa.

Saiba mais sobre as pesquisas realizadas pela Ufes no site da Revista Universidade: revistauniversidade.ufes.br

Análises

No Boletim Técnico ComRioComMar são apresentadas análises de quatro temas destacados na pesquisa: trabalho, renda e infraestrutura; água e meio ambiente; saúde; e reconhecimento e indenizações (veja abaixo o relatório completo).

Segundo os pesquisadores, em se tratando de um desastre socioambiental de larga escala, como foi o da barragem de Fundão, o processo de reparação de forma célere e efetiva é particularmente importante, dada a situação de vulnerabilidade na qual se encontram grande parte das comunidades e de pessoas atingidas. As reivindicações por reconhecimento e indenizações se tornam mais do que urgentes, considerando que os desastres são uma conjugação insuportável de inúmeros, graves e simultâneos danos e perdas para a coletividade afetada e que, sobretudo, há variados tempos e espaços entrelaçados nas situações pós-desastres, ilustrando que a restituição da normalidade nem sempre é viável.

“O Boletim Técnico produzido pela Rede mostra que as propostas em torno do tema de trabalho, renda e infraestrutura relatam um problema na manutenção dos modos de vida da população atingida, evidenciando que a geração de renda e a recuperação econômica dos municípios é fundamental e urgente, sobretudo quanto à pesca, ao turismo e à infraestrutura. A falta do acesso à água e ao saneamento básico e a desconfiança quanto às informações sobre a qualidade da água dos rios, do mar e do lençol freático também se revelaram uma importante preocupação dos atingidos”, comenta Euzeneia Carlos, professora participante da pesquisa.

A pesquisadora relata ainda que diversos problemas de saúde foram detectados nas comunidades atingidas, desde problemas dermatológicos até de saúde mental, revelando uma persistente face dos desastres socioambientais que inflam e direcionam demandas ao Sistema Único de Saúde (SUS). “Não menos importante, revelaram-se problemas no reconhecimento de populações atingidas e demandas por indenizações. O Boletim revela, por um lado, o quanto a forma como a reparação está sendo executada exclui comunidades e grande parcela dos atingidos de ter seus direitos reconhecidos e, por outro, o quanto a desarticulação com as políticas públicas instituídas agrava ainda mais as condições de vulnerabilidade dessas populações”, conclui.

Morosidade

Os pesquisadores concluíram que é inegável, num contexto de desastre socioambiental da proporção do rompimento da barragem de Fundão, que o processo de reparação e de compensação deveria ser realizado de forma mais efetiva, em vista das múltiplas situações de vulnerabilidade produzidas pelos efeitos do desastre. Contudo, o que se tem observado nas ações de reparação das mineradoras por meio da Fundação Renova é que, sobretudo no que se refere ao campo socioeconômico, elas têm sido marcadas por morosidades e não cumprimento das determinações acordadas judicialmente.

Ainda segundo o Boletim, decorridos quase cinco anos do desastre, as empresas reparadoras ainda postergam a execução de ações de reconhecimento e indenização de grande parcela de atingidos, principalmente no campo social e econômico, considerados não enquadráveis nas categorias definidas, a priori, pela Renova, bem como de comunidades e de territórios afetados não localizados na calha do rio Doce, impedindo o acesso dessas populações às ações reparadoras e mitigadoras.

Outro ponto destacado pelos pesquisadores é que a forma como a reparação está sendo executada exclui comunidades e grande parcela dos atingidos de ter seus direitos reconhecidos e reparados. Destaca-se, ainda, que a desestruturação das atividades produtivas nos municípios, dos modos de vida de comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, entre outras, afetou de múltiplas formas o trabalho e a renda, gerando a desconfiança da população sobre a qualidade da água e a segurança alimentar quanto ao pescado e à agricultura.

Além disso, segundo os pesquisadores, a morosidade das ações de reparação e compensação contribui para ampliar danos e perdas ao longo do tempo, num processo de abandono social no decorrer das reparações que in­crementa progressivamente as chances de os danos se tornarem irreparáveis. “Mais do que ações difusas ou reconhecimento parcial, são necessárias políticas públicas integradas e intersetoriais para a recuperação ambiental, a reestruturação socioeconômica, a garantia de segurança hídrica e alimentar e a proteção à saúde. A multidimensionalidade dos impactos causados pelo desastre da mineração torna premente a reparação integral e a garantia dos direitos lesados de todas as comunidades e pessoas atingidas”, reforça Euzeneia Carlos.

Entretanto, os pesquisadores ressaltam que, tanto o Ministério Público como a Defensoria Pública têm atuado no sentido de garantir os direitos dos atingidos, e que os Poderes Legislativos municipal e estadual devem ser mobilizados para que, ao lado dos demais poderes, somem esforços a fim de que os atingidos tenham seus direitos de reconhecimento e de reparação atendidos.

Os resultados produzidos pela pesquisa estão sendo encaminhados às autoridades governamentais, às comunidades locais atingidas pelo desastre, aos prefeitos e aos secretários municipais das cidades atingidas, gestores da Fundação Renova, peritos do Ministério Público Estadual e Federal, Defensorias Públicas e pesquisadores.

Além da Ufes, participaram do projeto pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos/RS) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Na Ufes, o trabalho contou com a participação dos professores do Departamento de Ciências Sociais Euzeneia Carlos, Marta Zorzal, Luciana Andressa Souza e Sandro José da Silva; e do Departamento de Comunicação Social Fábio Malini e Fábio Gouveia, além de estudantes de graduação e de pós-graduação.

A pesquisa contou com recursos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (Fapes).

O desastre

A tragédia em Mariana aconteceu no dia 5 de novembro de 2015 e foi provocada pelo rompimento da barragem do Fundão, controlada pela mineradora Samarco, uma joint-venture entre a empresa brasileira Vale S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton. Na época, foi considerado um dos maiores desastres socioambientais dos últimos tempos. O tema despertou preocupação nos mais diversos segmentos da sociedade e interesse da mídia nacional e internacional.

O desastre despejou 56 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração sobre o Rio Doce, contaminando 663 quilômetros do curso do rio, que se estende de Mariana, em Minas Gerais, a Regência, no Espírito Santo, espalhando-se pelo mar e atingindo a costa norte do estado. No seu percurso desde o Complexo de Germano, que sedia a barragem, até a foz do Rio Doce, a lama atingiu severamente mais de um milhão de habitantes de 47 municípios, sendo 37 de Minas Gerais e dez do Espírito Santo. Os prejuízos foram estimados em US$ 5,2 bilhões, ou R$ 20 bilhões, baseados no valor estipulado pelo governo federal na época do acidente.

Uma quantidade significativa de barro, proveniente do rompimento da barragem, acabou com a vegetação por onde passou e deixou rastro de destruição no Rio Doce. Ambientalistas acreditam que o efeito dos rejeitos no mar continuará por mais cem anos, sem contar os danos sociais, psicológicos e de saúde nas milhares de pessoas atingidas pela tragédia. Dezenove pessoas morreram e 700 moradores ficaram desabrigados. Fauna e flora foram devastadas, entre outros danos ambientais.

O desastre ocasionou ainda danos incalculáveis aos produtores rurais, às comunidades locais e aos indígenas que dependiam da pesca, do turismo e do comércio para sobreviver. A arrecadação dos municípios afetados despencou, diminuindo investimentos na saúde, na educação e na segurança pública. A tragédia também resultou na destruição da infraestrutura dos municípios e afetou a população de forma intensa, principalmente as mais carentes, aumentando o número de desempregados. Estima-se que mais de duas mil pessoas foram afetadas.

Desde então, foram firmados quatro acordos extrajudiciais entre as empresas responsáveis pelo desastre (Samarco, Vale e BHP-Billiton) e a União, os governos dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, e o Ministério Público. O primeiro acordo, assinado em 2 de março de 2016, denominado Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), definiu 41 programas de reparação e compensação a serem executados e a estrutura institucional de governança.

Para executar essas ações, foi criada uma fundação de direito privado, a Fundação Renova, responsável pela elaboração de diagnósticos e execução dos programas, cuja manutenção cabe às mineradoras. Para orientação, acompanhamento e controle da execução, criou-se também um Comitê Interfederativo (CIF), constituído por gestores de órgãos federais, dos estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, de dois municípios atingidos e do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (CHB-Doce).

Entretanto, segundo os pesquisadores, a atuação da Fundação Renova tem sido criticada devido à baixa representatividade de atingidos e à morosidade na implementação dos programas de reparação. Em 2018, foi elaborado um novo acordo com o Ministério Público, a fim de aprimorar a governança do sistema de reparação. 

(*) Matéria atualizada em 21/09/2020, com a correção do nome da rede de pesquisa responsável pela elaboração do boletim.

Texto: Jorge Medina
Edição: Thereza Marinho

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Transparência Pública
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